ADUR Online #34: 1964, ainda precisamos falar disso
*ADUR Online
01 de abril de 2021
Por Marcus Oliveira
*Texto publicado originalmente no blog Horizontes Democráticos
Em 1985, o General João Baptista Figueiredo, último dos ditadores brasileiros, recusou-se a passar a faixa presidencial para José Sarney, preferindo sair às escondidas, pelos fundos do Palácio do Planalto. Essa cena é sintomática e marca os dilemas enfrentados no processo de transição para a democracia. Embora a promulgação da Constituição de 1988 tenha sido um avanço imprescindível para a construção de um ordenamento político democrático, o autoritarismo civil e militar permaneceu nos subterrâneos da Nova República. Nos momentos de crise, impulsionados entre tantos outros fatores pelo fracasso do projeto petista, as sombras do autoritarismo adquiriram novas dimensões a partir do momento em que Jair Bolsonaro ascendeu ao poder. Em sua nostalgia da Ditadura Civil-Militar, Bolsonaro revela, além de uma postura antidemocrática, o desejo de rompimento com a estrutura jurídica e política da Nova República. Diante desse passado mal elaborado que persiste, ainda é preciso acionar o combate pela história, memória e democracia.
O Golpe Civil-Militar de março de 1964, além de instaurar um regime ditatorial que duraria mais de duas décadas, interrompeu a experiência democrática em curso no Brasil desde 1946. Apesar das várias crises e de inúmeras tentativas de golpe, a ordem republicana surgida após a queda do Estado Novo estimulou a democratização da sociedade e o protagonismo da sociedade civil. No início dos anos 1960, essa cultura política democrática, fundamental para a manutenção dessa República, foi incapaz de fazer frente ao golpismo de parte das elites e dos militares.
O projeto dos militares, a despeito de suas diferenças internas, ambicionava uma modernização pelo alto, capaz de desmobilizar e controlar os impulsos políticos oriundos da sociedade civil. Nesse sentido, a ordem política e jurídica instaurada a partir dos Atos Institucionais e da Constituição de 1967, apontava precisamente para a construção de um Estado de Exceção marcado pela constante violação das liberdades individuais e dos direitos humanos. No preâmbulo do AI-1, editado em abril de 1964, apesar da manutenção da Constituição de 1946, os militares signatários se arrogam o Poder Constituinte e afirmam sua identidade com a nação brasileira. Nesses termos, a edição do AI-5, em dezembro de 1968, não configurou um golpe dentro do golpe, mas o aprofundamento, pela linha-dura, da excepcionalidade anunciada nos primeiros tempos do regime.
Todavia, o regime procurou mascarar sua própria excepcionalidade por meio da manutenção de determinados aspectos da institucionalidade democrática. Em meio aos mandatos cassados e eleições indiretas para os cargos do Executivo, houve a criação de um sistema bipartidário dividido entre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), representante das forças institucionais do regime, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), oposição que buscava se organizar politicamente dentro das instâncias institucionais possíveis.
Por outro lado, há uma fragmentação no campo das esquerdas. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), um dos atores políticos mais importantes do período, sofre inúmeras cisões internas motivadas por militantes que, inspirados pelos modelos revolucionários cubano e chinês, ingressaram na luta armada. Para os que aderiram às ilusões armadas, a derrubada do regime por meio da via insurrecional não significava a conquista da democracia, mas a possibilidade revolucionária de implementação da ditadura do proletariado. Os pecebistas jamais apoiaram a luta armada, permanecendo na defesa de uma estratégia que visava derrotar politicamente o regime, aprofundando as orientações democráticas que conduziam as ações do partido desde o final dos anos 1950. Em virtude disso, em função da ilegalidade, os comunistas se somaram à luta política do MDB e cumpriram papel significativo na luta pela recuperação da democracia.
A derrota da ditadura militar brasileira começa a ocorrer precisamente nas margens dessa institucionalidade política remanescente. Nos anos 1970, após o extermínio de grande parte dos grupos armados e dos primeiros sinais de crise do “milagre econômico”, a oposição emedebista se fortalece em torno da (anti)candidatura – simbolicamente desafiadora – de Ulysses Guimarães para a presidência da República. Nesse contexto, o MDB conquista importantes avanços no Legislativo e os militares anunciam seu projeto de abertura política.
Com Ernesto Geisel na presidência, a linha-dura representada por Costa e Silva e Médici perdem relevância diante da proposta de uma abertura lenta, gradual e segura. Contudo, isso não implicou o desaparecimento da linha-dura, tampouco a eliminação das arbitrariedades do regime. Concomitantemente a abertura, Vladmir Herzog e dirigentes do Comitê Central do PCB foi assassinada ou teve que ir para o exterior. Nesses termos, a proposta de abertura pensada no governo Geisel marcava a persistência da excepcionalidade do regime e o desejo de controlar o processo de abertura e transição. Para os militares, a desconstrução do aparato autoritário criado ao longo da ditadura deveria obedecer ao ritmo de uma transição delimitada e controlada pelos próprios militares, no qual a oposição deveria cumprir papel secundário. Na transição para os anos 1980, a Lei de Anistia, embora absolva os condenados e processados, pretendeu relegar os crimes e as arbitrariedades ao esquecimento. Por outro lado, o retorno do pluripartidarismo almejava o enfraquecimento do MDB por meio da divisão política dos setores oposicionistas.
Contudo, como atesta Luiz Werneck Vianna, é preciso distinguir projetos políticos e processos históricos. Reforçar essa distinção implica perceber que, apesar do caráter pactuado da transição, o projeto encabeçado pelos militares não foi integralmente vitorioso. As forças oposicionistas, mesmo divididas entre projetos de democracia política e social, foram capazes de disputar politicamente a transição. Em virtude disso, movimentos significativos como as “Diretas Já!” adquirem significados para além dos fracassos e derrotas políticas.
Portanto, o processo histórico de abertura e transição foi resultado dessa complexa trama política na qual diversos projetos se encontravam em disputa. Aqueles que defenderam a política e a democracia ao longo da ditadura militar foram os responsáveis pela elaboração dos caminhos políticos que permitiram a redemocratização do Brasil nos anos 1980. Todavia, a divisão dos atores políticos e a disputa dentro da própria institucionalidade do regime contribuíram para os dilemas vivenciados durante a transição e na Nova República.
Com Bolsonaro, tais dilemas se tornaram mais evidentes e se intensificaram. Vivemos dias atormentados nos quais alguns pensam no rompimento com o ordenamento republicano estabelecido pela Constituição de 1988 enquanto outros reencenam o passado de modo farsesco. Trata-se, ao contrário, de remover os obstáculos ao aprofundamento da democracia de 1988. Para isso, é preciso reconhecer a trajetória histórica que nos fez chegar até aqui, em toda sua complexidade, contradições e limites. É preciso demarcar uma leitura histórica que não oculte o quão trágico foi para a sociedade a ditadura civil-militar e, ao mesmo tempo, valorizar a estratégia política que a conduziu, com êxito, apesar dos percalços, para a democracia da Constituição de 1988.
Marcus Oliveira é Doutor em História pela Unesp.
*ADUR ONLINE é um espaço aberto aos docentes e pesquisadores da UFRRJ e de outras Universidades também. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR-RJ.
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